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que é ser mulher
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A imagem da mulher
Desde os primórdios da humanidade, a mulher é considerada um ser místico devido à sua capacidade gestacional. De acordo com um artigo da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, acredita-se que esta concepção remonta às sociedades primitivas, onde as mulheres eram consideradas superiores pelas suas características reprodutivas. Estas sociedades, frequentemente organizadas de forma matrilinear com a descendência definida pela linhagem materna, associavam o feminino à fertilidade e fecundidade. Estas características conferiam à mulher um papel central, realçando a sua capacidade de gerar vida, um dom que exige um estado de saúde reprodutiva favorável.
A estátua Vénus de Willendorf é um exemplo desta idealização que surge da antiguidade. Representada com formas exageradas – vulva, seios e barriga volumosos – simboliza a fertilidade. Por outro lado, os braços frágeis e a cabeça desprovida de rosto destacam a primazia da maternidade em detrimento da individualidade. Este artefacto reflete a ligação ancestral entre o feminino e o início da vida.
Este ideal ancestral perdura até aos dias de hoje, onde a associação entre o feminino e a fertilidade permanece como tema central. Embora existam mudanças na percepção e valorização da mulher para além do seu papel reprodutivo, os órgãos reprodutores mantêm uma influência, não apenas na saúde física, mas também na forma como a mulher é vista e na percepção que tem de si mesma.
Esta conexão, que atravessa séculos, demonstra que o simbolismo da fertilidade e da maternidade continua a moldar, de diversas formas, a construção da identidade feminina na sociedade contemporânea.
O valor simbólico da fertilidade e da maternidade torna-se relevante ao abordar temas como o cancro do ovário, uma doença que afeta diretamente os órgãos reprodutores femininos. Para muitas mulheres, o diagnóstico e, em alguns casos, a necessidade de remoção dos órgãos reprodutivos, como os ovários ou o útero, têm repercussões que vão além do físico, tocando o emocional e o psicológico, levando a que muitas vezes questionem o seu valor enquanto mulheres ou a sentirem que perderam uma parte essencial de si. Esta questão foi explorada através dos testemunhos de três sobreviventes de cancro do ovário, partilhados no podcast Ciclos Quebrados. Estas mulheres relatam as suas experiências, as transformações que viveram e como se sentiram após a remoção dos órgãos reprodutores femininos. Como é que esta mudança afetou a forma como se percepcionam enquanto mulheres?
Estátua Vénus de Willendorf
As mudanças
Manter os hábitos
Cláudia Fraga, uma das sobreviventes que partilhou a sua experiência, reconheceu o cancro do ovário como uma doença silenciosa e difícil de detectar devido à subtileza dos seus sintomas:
“ Ora, eu estava com 49 anos. Quem é a mulher que aos 49 anos
não se sente cansada por um motivo ou outro? ”
Além disso, recorda as dores intensas que enfrentou nos estadios iniciais da doença, partilhando um momento particularmente marcante:
“ Quando me levantei, quando acordei na manhã seguinte, e dormi poucas horas,
as dores tinham passado, e eu pensei que estava morta, francamente. ”
Essas reflexões sublinham os desafios da identificação precoce e o impacto físico e emocional que a doença impõe. Cláudia constatou que, apesar da remoção dos órgãos reprodutores, não sentiu que a sua feminilidade tenha sido afetada:
“ Não, eu para ser franca não me senti diferente. Senti exatamente que ainda bem que vivo aqui,
que tenho esta equipa médica a suportar tudo isto. ”
Cláudia reconhece as mudanças físicas e as suas várias cicatrizes resultantes das cirurgias, mesmo assim, afirma que as mudanças não a impedem de continuar os seus hábitos, como usar biquini na praia, já que a sua "religião" é nadar no mar. No entanto, reconheceu que nem todas as mulheres sentem o mesmo:
“ É tudo tão rápido, é tudo tão drástico que eu acredito, e sei,
que há mulheres que se sentem muito, muito diferentes.
Mas eu, pela minha personalidade, nunca me senti diferente. ”
Hoje, Cláudia é presidente e Fundadora da MOG, e dedica a sua vida a ajudar mulheres que passaram pelo o que ela passou.
Fertelidade
e
maternidade
Um futuro diferente
Sara Gaspar, por outro lado, relatou como o diagnóstico abalou profundamente a sua autoestima e a forma como se percebia enquanto mulher. Isto foi agravado pelo impacto do COVID-19, que a obrigou a dar a notícia do diagnóstico aos pais por telefone, devido às restrições:
“ Foi através de telefone e foi das coisas mais difíceis que eu tive que fazer.
Porque eu não estava ali para segurar a mão, a minha mãe para segurar a mão do meu pai. ”
Com apenas 22 anos e ao saber que não poderia ter filhos, confessou que após sair da consulta onde confirmaram que tinha cancro, sentou-se no carro com o seu parceiro e disse:
“ Olha, eu quero que me deixes, não quero mais nada contigo.
Deixas-me em casa dos meus pais, vais-te embora, vais à tua vida,
porque eu não vou ser uma mulher inteira e um dia tu vais querer ser pai
e eu não te vou poder dar isso. ”
Sara admite que durante vários meses não se sentiu uma mulher completa e que a recuperação emocional foi um processo difícil:
“ Eu, por exemplo, eu já nem me maquilhava, eu já nem me vestia como antes.
(...) Abalou muito a minha autoestima. ”
Apesar de já não ter cancro, o impacto permanece, e as mudanças são permanentes. Ainda hoje, Sara afirma:
“ Sim, ainda hoje olho-me ao espelho e não gosto do que vejo.
(...). Até porque eu era magrinha, uma rapariga com tudo no sítio.
(...). O meu corpo mudou muito e agora tenho que aprender a gostar dele como é agora. ”
O futuro de Sara mudou completamente após o cancro, mas, como a própria disse, existem outros métodos para aquelas que querem ser mães, apesar de não serem férteis. A jornada até ao futuro de Sara será apenas diferente da que ela imaginou.
Sara continua a sua vida normalmente, mas continua a celebrar o marco da sua cura, fazendo 3 anos em 2024.
Contar
as histórias
Ver o lado positivo
Por sua vez, Lu Leitão relatou que antes de ter sido mãe, em 2016, tinha sido diagnosticada com Endometriose, doença em que as células endometriais funcionais são implantadas na pélvis fora da cavidade uterina. Esta descreve como um bom processo em relação à cirurgia que teve de ser submetida. No entanto, em 2020, dois meses após ter sido mãe, entra o COVID, o que a impossibilitou de ir a consultas médicas, só o fez em abril de 2021:
“ Nessa altura fui fazer uma consulta de rotina de ginecologia em que
a médica (...) identificou um pequeno mioma.
(...) E disse que para repetir daqui a seis meses que em princípio não haveria qualquer problema.
Eu voltei a repetir os exames e aí sim, fui diagnosticada com o cancro do ovário. ”
Ao falar sobre a sua experiência de ser diagnosticada aos 39 anos, Lu revelou que preferiu adotar uma visão positiva:
“ Claro que nos cai o mundo ali em cima durante alguns minutos.
Foi o que me aconteceu como qualquer outra pessoa que eu acho que
recebe um diagnóstico deste, mas depois foi pensamento positivo.
Bora lá, há pessoas que estão cá. E eu acreditei também, sempre. ”
Durante este processo confessou que teve dúvidas partilhando uma conversa que teve com o seu médico após o diagnóstico:
“ Doutor, isto tem cura? E ele disse, se não tivesse cura, não estava aqui.
Eu disse, então vamos lá tratar disso. E foi neste espírito que eu tentei levar todo o processo. ”
Quando questionada se a remoção dos órgão reprodutivos afetou a forma como se percepcionava enquanto mulher, Lu respondeu prontamente:
“ Não, porque eu na verdade, eu tento olhar sempre para o lado bom das coisas
e eu senti que fui uma privilegiada porque tive a sorte de ter a minha filha e então,
na verdade já só, era só um órgão, não é?
Que eu consigo fazer uma vida dita normal.(...) Na verdade, só tenho uma cicatriz.
Sim, eu costumo dizer que é uma marca de sobrevivência, por isso está tudo certo. ”
Por fim, Lu destacou a falta de apoio estatal para as cirurgias do cancro do ovário:
“ Ninguém se lembra que nós temos uma barriga que foi toda ela cortada e já disse este título de brincadeira não é nada que me tire o sono, mas se calhar dava mais estímulo.
Aqui há muitas mulheres que desanimam e que se calhar
olham para o seu corpo já não da mesma forma, claro! ”
Apesar disso, Lu referiu que a partilha da sua experiência com outras mulheres a ajudou no seu processo de aceitação:
“ Porque no fundo é a partilha. Apesar de eu poder estar a partilhar a minha história,
nunca ninguém vai sentir o mesmo que eu senti, mas acho que tendo outras doentes exatamente
no mesmo processo, todas nos compreendemos, quase sem precisar de palavras. ”
Em 2024, Lu alcançou o marco de 2 anos sem cancro, e homenageia a sua jornada com uma retrospectiva.
Uma nova
prespetiva
Ser mulher
Falar sobre o cancro do ovário, portanto, é mais do que abordar uma questão de saúde. É uma oportunidade para refletir sobre como a sociedade vê a mulher para além do seu papel reprodutivo e para reconhecer a força com que estas mulheres conseguem redefinir as suas identidades. Esta reflexão é essencial para promover uma visão mais abrangente e inclusiva da feminilidade e da resiliência humana, pois, tal como Cláudia disse:
“ Juntos, somos mais fortes! ”
As histórias destas mulheres mostram que, apesar de diferentes idades, tiveram um diagnóstico em comum e, apesar de perspectivas distintas, conseguiram vencer esta doença silenciosa. O cancro do ovário não as definiu, estas é que redefiniram o que significa resistir e vencer, inspirando-nos a olhar para a vida com mais força, esperança e união. As suas fotos durante o início e fim desta luta mostram a força destas mulheres e como é possível sobreviver a esta doença.
Se quiser conhecer melhor as histórias da Cláudia, Sara e a Lu, convidamo-lo a ver os episódios completos do Podcast Ciclos Quebrados.